Sertanejo: Do Coração Caipira às Multidões Digitais
A música encanta nossos ouvidos. Mas é a palavra que muitas vezes chega mais fundo, lá onde a razão não alcança.
História, a Música e as Vozes do Brasil
O sertanejo brasileiro possui raízes profundamente musicológicas, que remontam não só à música caipira paulista e mineira, mas também a tradições musicais ibéricas e elementos indígenas. O gênero nasceu na ruralidade brasileira, como veículo de expressão oral e afetiva de populações afastadas dos grandes centros urbanos. Do ponto de vista técnico, é caracterizado pela utilização de escalas menores, sobretudo o modo eólio, responsável por imprimir à música sertaneja seu ar melancólico e nostálgico, evidenciado em modas de viola como as eternizadas por Tonico e Tinoco.
A estrutura rítmica inicial do sertanejo raiz é bastante simples, baseada em compassos binários (2/4) ou ternários (3/4), com um andamento moderado que permite às letras se destacarem como narrativa principal. A viola caipira, com suas dez cordas afinadas em pares, cria camadas harmônicas ricas e únicas, frequentemente exploradas em passagens ornamentadas que vão além do simples acompanhamento, transformando o instrumento em voz narrativa. Para a musicologia, o sertanejo revela muito sobre a formação cultural do Brasil: as letras são verdadeiras crônicas sociais que preservam dialetos regionais, usos linguísticos e modos de vida do campo, funcionando como documentos culturais tão importantes quanto qualquer registro escrito.
A fusão entre tradição e inovação sonora no sertanejo universitário trouxe também novos recursos musicológicos, como beats eletrônicos, linhas de baixo mais marcantes e técnicas vocais próximas do pop, sem perder a essência narrativa. Assim, o sertanejo se revela não apenas um gênero musical, mas um campo vasto de estudo musicológico, onde convivem tradição, emoção e inovação.
A trajetória do sertanejo é, ao mesmo tempo, a história da modernização do Brasil. O gênero emerge no início do século XX, com as primeiras gravações de modas de viola que narravam dramas pessoais, religiosos e regionais. Nas décadas de 1940 e 1950, nomes como Tonico & Tinoco consolidam o sertanejo raiz, cuja função social era relatar a dureza da vida rural, o êxodo nordestino e o amor bucólico. Na década de 1970, surge o sertanejo romântico, que começa a migrar do ambiente rural para o urbano. As letras se afastam um pouco das narrativas do campo e passam a girar em torno de histórias de amor, traição e saudade, mantendo o tom dramático, mas agora voltado a um público mais amplo. O grande divisor de águas ocorre nos anos 1990, quando duplas como Chitãozinho & Xororó, Zezé Di Camargo & Luciano e Leandro & Leonardo levam o gênero à televisão, modernizando arranjos com teclados, bateria eletrônica e até cordas sinfônicas, criando um sertanejo mais próximo da música pop.
O termo “sertanejo universitário” surge nos anos 2000, quando jovens artistas introduzem novas temáticas: baladas, ostentação, consumo de bebidas, festas. Jorge & Mateus, Luan Santana e Gusttavo Lima passam a dominar as rádios, enquanto o gênero se torna líder absoluto em plataformas digitais. O sertanejo universitário não apenas mudou a sonoridade do gênero, mas também trouxe profundas implicações culturais, pois representa a ascensão social das classes médias e a juventude do interior conquistando espaços antes reservados ao eixo Rio-São Paulo. Hoje, o sertanejo é multifacetado: vai da moda de viola tradicional até misturas com trap, funk e música eletrônica, confirmando sua capacidade de se reinventar para permanecer relevante em cada nova geração.
As letras sertanejas são, sob o olhar musicológico e literário, verdadeiros documentos sociais. Desde suas origens, o gênero utilizou a canção como veículo de crônica social, narrando casos, lendas, tragédias e histórias amorosas. No sertanejo raiz, letras como “Chico Mineiro” são quase contos literários cantados, com personagens, enredo, clímax e desfecho, preservando inclusive o português regional e expressões típicas que se tornam ícones culturais. Quando o sertanejo evolui para o romântico e universitário, mantém sua vocação narrativa, mas adapta a temática. Passa a falar de amores platônicos, corações partidos, baladas e ostentação. O surgimento do termo “sofrência” não é trivial: na musicologia, define-se um estilo lírico que combina melodia menor, timbres melancólicos e letras profundamente emocionais. A sofrência se tornou um fenômeno cultural, sobretudo nas vozes femininas.
Diversidade e Futuro
Artistas como Marília Mendonça elevaram o gênero ao status de confissão pública, cantando não apenas desilusões amorosas, mas também independência, autoestima e empoderamento feminino. Marília, Maiara & Maraisa e Simone & Simaria trouxeram letras em que a mulher não é mais vítima passiva, mas alguém que decide, sofre, chora, mas também impõe limites, traça suas próprias regras e questiona o machismo. Letras como “Infiel” transcendem o drama amoroso e se transformam em manifesto de autonomia feminina, provocando discussões sobre relações tóxicas e respeito à mulher. Além disso, há um movimento crescente de sertanejos LGBTQIA+, que enfrentam resistência, mas começam a ganhar espaço e abordar afetividades diversas. Assim, as letras sertanejas seguem evoluindo como espelho social, mantendo sua força literária ao mesmo tempo em que absorvem as pautas contemporâneas do Brasil.
Se até a década de 90 o sertanejo era um território quase exclusivo dos homens, o século XXI trouxe uma revolução silenciosa: o protagonismo feminino. A presença feminina no sertanejo universitário não se limitou a ocupar palcos — ela transformou o discurso, a estética e o mercado. Antes, as mulheres apareciam nas letras quase sempre como figuras passivas: a “amada”, a “traidora” ou a “santa”. Hoje, elas são as vozes que narram suas próprias histórias. Marília Mendonça, com suas composições confessionais, não apenas quebrou recordes de streaming, mas redefiniu o que significa ser mulher no sertanejo. Canções como “De Quem é a Culpa?” viraram hinos de mulheres que, cansadas de padrões tóxicos, exigem respeito e liberdade. A linguagem direta, sem pudores, cria identificação imediata, principalmente entre o público feminino jovem. Esse movimento não é apenas musical, mas cultural: nos bastidores, mais compositoras, produtoras e empresárias vêm conquistando espaço. Paralelamente, há artistas LGBTQIA+ desbravando território, como Gabriel Gava, que mesmo enfrentando resistências, tem trazido uma nova pluralidade ao gênero. Contudo, o sertanejo ainda enfrenta desafios: a misoginia e o conservadorismo persistem, sobretudo em setores mais tradicionais. Há críticos que acusam o gênero de machismo, principalmente em letras masculinas que objetificam mulheres ou exaltam comportamentos abusivos. Entretanto, o avanço feminino é inegável, não apenas nas letras, mas em espaços de poder na indústria. O sertanejo tornou-se, assim, palco de disputas e conquistas simbólicas, refletindo as contradições do Brasil contemporâneo: um país que se moderniza, mas onde o conservadorismo ainda tenta impor limites à diversidade.
A força do sertanejo no Brasil transcende o musical — é também fenômeno econômico e social. Dados recentes apontam que o gênero responde por cerca de 30% do consumo musical brasileiro, tanto em rádio quanto em plataformas digitais como Spotify e YouTube. Artistas sertanejos estão entre os mais seguidos nas redes sociais, movimentando bilhões de visualizações. Segundo relatório do Pro-Música Brasil (2023), músicas sertanejas ocuparam 8 das 10 primeiras posições no ranking anual de streams no Brasil. Esse domínio se estende aos palcos: eventos como a Festa do Peão de Barretos geram movimentações econômicas superiores a R$ 700 milhões, demonstrando o poder do gênero não apenas culturalmente, mas economicamente. Uma tendência clara é a fusão do sertanejo com outros ritmos, como funk, trap, reggaeton e até música eletrônica, numa tentativa de captar o público jovem conectado e cosmopolita. Canções como “Apelido Carinhoso” de Gusttavo Lima, ou parcerias entre sertanejos e DJs, são exemplos dessa hibridização sonora que visa ampliar fronteiras. O mercado também começa a prestar atenção em artistas independentes que utilizam redes sociais para lançar suas músicas, muitas vezes com baixos custos de produção e grande alcance orgânico. Outra tendência é a internacionalização: há tentativas de artistas sertanejos de gravar músicas em espanhol ou inglês para entrar no mercado latino e norte-americano. Porém, há desafios: o gênero ainda precisa enfrentar críticas sobre letras misóginas, falta de diversidade racial e resistência a temáticas LGBTQIA+. O futuro do sertanejo dependerá de como conseguirá equilibrar tradição, inovação e inclusão. É certo que, musicalmente, o gênero seguirá relevante, pois possui raízes profundas na identidade brasileira e capacidade única de contar histórias. Mas sua sobrevivência cultural dependerá de abraçar a pluralidade do Brasil moderno.
Nando Andrade
Visuallyze
Produtor de conteúdo audiovisual e teatro. Acredito no poder da arte para transformar realidades. Junte-se a mim nessa jornada de criação!
