Samba: O Pulsar do Brasil — Música, História e Expressão da Alma Popular
Do ponto de vista musicológico, o samba é uma das formas musicais mais sofisticadas do mundo. Não por acaso, é objeto de inúmeros estudos etnomusicológicos que investigam sua riqueza rítmica, melódica e social. Sua base rítmica vem do batuque africano, sobretudo do Congo e de Angola, trazido pelos escravizados ao Brasil. O samba caracteriza-se por seu pulsar sincopado, onde o ritmo dança em torno do compasso 2/4 ou 4/4, criando aquela sensação irresistível de balanço. Instrumentos como o surdo, tamborim, pandeiro e cuíca estabelecem diferentes camadas rítmicas, cada uma interagindo num verdadeiro diálogo polifônico, conhecido na musicologia como “polirritmia afro-brasileira”. A harmonia do samba, embora frequentemente baseada em ciclos simples (I-IV-V ou progressões menores), se distingue pela complexidade dos acordes usados, como sétimas, nonas e dissonâncias, herdadas da influência do choro e da música europeia. Sambistas como Cartola ou Nelson Cavaquinho criaram progressões harmônicas que rivalizam em sofisticação com o jazz, tornando o samba uma joia da harmonia popular. Melodicamente, o samba costuma ter linhas cantáveis e intervalos curtos, mas há exemplos virtuosos de fraseados, como nas composições de Paulinho da Viola ou Dona Ivone Lara. Outro elemento musicológico essencial é o uso do contracanto, onde instrumentos ou coros respondem às frases principais, criando a sensação de diálogo na música. Para além dos aspectos técnicos, musicólogos destacam a função do samba como ritual de comunhão social. Seja no terreiro, no morro ou na avenida, o samba é experiência coletiva. Por isso, estuda-se também o samba como prática social, um “fato social total”, no dizer do antropólogo Marcel Mauss, que abarca música, dança, religião, política e identidade. Essa complexidade faz do samba não apenas um gênero musical, mas um campo cultural riquíssimo para a musicologia, onde se entrelaçam estética, história e resistência.
A História do Samba: Das Rodas de Tia Ciata ao Palco Global
A história do samba começa nos quintais do Rio de Janeiro, especialmente nas casas de figuras como Tia Ciata, mãe de santo e personagem central no início do século XX. Era em suas rodas que músicos como Donga, Pixinguinha e João da Baiana experimentavam misturas de batuques africanos com modinhas e lundus europeus. Em 1917, Donga registra “Pelo Telefone”, considerado o primeiro samba gravado, marcando o início da história fonográfica do gênero. Nos anos 30, com Getúlio Vargas buscando construir uma identidade nacional, o samba foi alçado a símbolo oficial do Brasil. Nasciam escolas como Mangueira, Portela, e Estácio de Sá, que transformariam o samba em espetáculo carnavalesco. Compositores como Cartola, Noel Rosa e Ary Barroso elevaram o samba à categoria de arte popular, criando letras sofisticadas e melodias memoráveis. Nos anos 50, surge o samba-canção, mais lento, romântico e influenciado por bolero. Artistas como Dolores Duran e Maysa tornam-se ícones desse subgênero. A década de 60 testemunha o surgimento da bossa nova, um filho refinado do samba, que internacionalizou a música brasileira através de João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes. A bossa é samba em essência, mas com batida suave e harmonia jazzística. Paralelamente, o samba de raiz continuava forte, com Paulinho da Viola, Clara Nunes e Martinho da Vila mantendo viva a tradição. Nos anos 80, o pagode popularizou o samba novamente, com grupos como Fundo de Quintal inovando na instrumentação e linguagem, tornando o gênero mais acessível às massas urbanas. Hoje, o samba continua vivo, seja na Sapucaí, nas rodas de bairro ou nos álbuns de artistas contemporâneos como Diogo Nogueira, Teresa Cristina e Maria Rita. O samba se tornou não apenas música, mas patrimônio imaterial da humanidade, reconhecido pela UNESCO em 2005. Sua história é, portanto, inseparável da própria história social, cultural e política do Brasil.
As letras do samba são, sem exagero, uma das maiores crônicas sociais do Brasil. Desde o início, o samba foi voz das periferias, narrando a vida difícil no morro, as desigualdades, o preconceito e também a alegria de viver. Noel Rosa, nos anos 30, satirizava a hipocrisia da sociedade carioca em sambas como “Com Que Roupa?”. Cartola, com sua poesia triste e delicada, eternizou versos como “As rosas não falam, simplesmente as rosas exalam”. Sambistas transformaram sentimentos universais em arte lírica, com simplicidade e profundidade. As letras de samba muitas vezes misturam dor e humor, criando aquela dualidade típica do brasileiro: rir para não chorar. Um exemplo é “O Mundo é um Moinho”, de Cartola, considerada uma das músicas mais tristes do repertório nacional, mas belíssima na sua simplicidade poética.
O samba também é espaço para exaltação, seja de bairros, de escolas de samba ou de figuras queridas da comunidade. Em sambas-enredo, encontramos verdadeiras aulas de história, como em “História para Ninar Gente Grande”, da Mangueira (2019), que revisita narrativas negras e indígenas apagadas dos livros oficiais. A modernidade trouxe novos temas às letras de samba. Artistas como Teresa Cristina abordam feminismo, violência doméstica e empoderamento negro. O samba, embora seja associado à alegria, é também palco de contestação social. No pagode, apesar de muitas letras focarem em romance, há grupos que trazem discussões sobre racismo, pobreza e desigualdade.
Samba, Empoderamento e Diversidade: A Nova Bateria da Inclusão
Durante décadas, o samba foi dominado por homens, tanto nas rodas quanto nas escolas de samba. Mulheres, quando participavam, muitas vezes estavam restritas à função de intérpretes ou de musas, como rainhas de bateria. Essa realidade começou a mudar significativamente a partir dos anos 60. Clara Nunes, uma das maiores sambistas de todos os tempos, foi pioneira ao ocupar o espaço do samba com voz forte, religiosidade afro-brasileira e repertório profundamente ligado à cultura popular. Seu sucesso abriu portas para outras mulheres, mas a luta foi árdua. Nos anos 80 e 90, nomes como Alcione, Leci Brandão e Beth Carvalho consolidaram a presença feminina, não apenas como intérpretes, mas como compositoras e militantes sociais. Leci Brandão, por exemplo, foi uma das primeiras sambistas a tratar abertamente de racismo, desigualdade e direitos LGBTQIA+ em suas canções. O samba tornou-se, assim, espaço de empoderamento feminino e negro. Nos últimos anos, artistas como Teresa Cristina e Maria Rita têm levado adiante essa bandeira, abordando temas contemporâneos como feminismo, política e representatividade negra. A diversidade sexual também começa a conquistar espaço. Na Sapucaí, escolas como Mangueira e Beija-Flor têm incluído narrativas LGBTQIA+ em seus enredos. Além disso, compositores e intérpretes LGBTQIA+ passaram a ganhar visibilidade em rodas de samba, ainda que haja resistência em alguns setores conservadores. O samba, que antes reproduzia padrões machistas e homofóbicos, vive hoje um momento de transição. O gênero está se tornando mais plural, refletindo o Brasil real, diverso e cheio de vozes que exigem espaço. O samba é, cada vez mais, não apenas festa, mas palco de afirmação identitária e luta por direitos.
Nando Andrade
Visuallyze
Produtor de conteúdo audiovisual e teatro. Acredito no poder da arte para transformar realidades. Junte-se a mim nessa jornada de criação!
